quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Cem Mil - por Nuno Serras Pereira

Cem mil pessoas aglomeraram-se no terreiro do paço. Cem mil braços ameaçadores, de punho cerrado, ergueram-se vibrantes e violentos. Cem mil bocas urraram espumejantes, bramindo por justiça. O terreiro dos cem mil estava como o metropolitano em hora de ponta, como sardinhas em lata de conserva, não havia espaço livre, por mínimo que fosse. Os canais televisivos mostraram filmagens obtidas a partir de helicópteros esvoaçantes. As estações emissoras amplificando transmitiram ecos multiplicados, infindáveis. Impropérios de cem mil multiplicados por cem mil, intimidações cem mil multiplicadas por cem mil, demagogias cem mil multiplicadas por cem mil. Cem mil cabeças soberbamente erguidas clamando cem mil fúrias. Cem mil peitos inchados de cem mil cóleras. Cem mil corações pulsando cem mil vezes cem mil taquicardias ferozes. Terreiro do paço transformado, rebaptizado, em terreiro de um povo justiceiramente ululante. Assim nos foi dito, assim no-lo mostraram, assim ficará para a posteridade nos anais da comunicação social.

Mas eu vi o que eles não quiseram ver. Eu vi duzentas mil pernas numa pisada de lagar esmagando cem mil crianças nascituras. Eu vi duzentos mil olhos num delírio sanguinário. Eu vi decepados duzentos mil braços minúsculos. Eu vi mutiladas duzentas mil pernas miúdas. Eu vi cem mil cabeças decapitadas. Eu vi branquejando uma massa cem mil vezes extensa de miolos derramados. Eu vi duzentos mil olhinhos lacrimejando sangue. Eu vi cem mil boquinhas num grito silencioso impedido clamando por justiça e misericórdia. Eu vi cem mil corações que deixaram de bater. Eu vi que o sangue inocente banhava até à cintura a multidão dos cem mil que foram mostrados. E vi-os mergulharem nesse mar sanguinolento sorvendo-o a grandes tragos numa embriaguez alucinada. E ouvi um uivo pavoroso, tremendo e gélido. E foi-me comunicado que aquele era o terreiro das crianças por nascer. E soube que aquela multidão tinha votado favoravelmente, ou se tinha abstido, aquando do referendo sobre o aborto. E uma voz disse-me que a justiça será rigorosa e severa para os injustos,  e que não haverá misericórdia para os desapiedados, nem compaixão para os desumanos e indiferentes. E foi-me afirmado que um Patriarca proibiu o clero de falar da matança das crianças nascentes nos dias do Senhor da Vida, quando ela é celebrada e Se oferece nos altares.

À honra de Cristo e de Seu servo S. Francisco de Assis.

04. 10. 2012