quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Nada te assuste… - Nuno Serras Pereira

Eu sei que nestas missivas que vou enviando não deveria falar de mim, no entanto, por vezes, e esta é uma delas, sinto o dever de o fazer para salvaguarda e defensa dos meus amigos. Sabereis que todo eu sou uma enfermidade, tantas são as doenças que me acometem que um confrade meu já exclamou assombrado: Puxa!, é preciso muita saúde para aguentar tanta doença!

Ora uma dessas obriga-me, de há uns anos a esta parte, a tomar umas cápsulas que não só me engordam como me abrem grandemente o apetite. Devereis saber que todo eu sou uma farmácia ambulante, e um verdadeiro índice terapêutico - não há droga legal que não ingira ou que não conheça, com todos os seus efeitos, contra-indicações e interacções medicamentosas: se a teologia fosse farmacêutica eu seria um eminente catedrático. Sucedeu porém, como periodicamente me acontece, que entretanto contraí uma nova maleita, pelo que um médico feroz ao verificar a minha obesidade, as incomensuráveis toneladas de gordura que fui acumulando como um imenso javardo, um enorme tonel de banha, um oceano de toucinho, peremptória e implacavelmente vociferou crueldades ásperas, bárbaras e medonhas traduzidas neste conciso mas pavoroso verbo: Irra, emagreça!!! Caramba!

Tolhido de paúra recolhi-me ou arrastei-me cabisbaixo, com grande pesar, imaginando futuros negros e tremendos, até ao convento. Cheio de receança, timidamente, comecei por abster-me de alguns cozinhados que me asseguraram serem insalubres porque geradores enxúndia. Depois, aos poucos, à medida que ia fraquejando fui ganhando forças para a luta. Travaram-se então combates tremendos, batalhas épicas, escaramuças heróicas. Cada prato, era um inimigo a derrubar; cada copo, um comando a abater; cada sobremesa, um fuzileiro a eliminar; cada cedência, uma traição; cada gelado, um submarino a afundar; cada bolo, um porta-aviões a destruir. 

Preocupados por me verem a definhar os meus confrades começaram por me avisar: olhe que tu qualquer dia desapareces. No entanto, com o decorrer do tempo, quando me lobrigavam ao fundo do corredor, e como são infindáveis os corredores nos conventos!, viam um esqueleto, eu, a caminhar e cuidavam ser uma alma do outro mundo. Pelo que o Guardião mandou que no coro se fizessem preces e cada irmão trouxesse consigo água benta, e, ademais, alcançou do Bispo diocesano que a todos os sacerdotes fosse concedida a devida autorização para fazerem exorcismos. Fui desde então sujeito a consecutivos chuveiros de água benta e a incessantes exorcismos até que se concluiu que este cadáver ambulante, este esqueleto barbudo era mesmo eu, irremediavelmente enfermo, amumiado e escanzelado até que a próxima doença me obrigue de novo a anafar. 

Fique pois, isto que aqui deixo escrito, como aviso para que quem se depare comigo não se assuste cuidando espavorido que topa com um espírito ou com um esqueleto reanimado. Sou eu mesmo. E assim serei até que nova ruindade me force, de novo, a tornar-me um paquiderme banhudo.

23. 08. 2012