quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Que Natal?

1. S. Francisco de Assis, na esteira de S. João Crisóstomo, chamava ao Natal a Festa das Festas, porque nesse dia tinha começado a nossa Salvação. Por isso, apesar de aqueles tempos serem de penitências e mortificações rigorosas, como frei Rufino lhe perguntasse se seria lícito comer carne no Natal caso este se celebrasse num sexta-feira, respondeu-lhe que Deus lhe perdoasse por tal interrogação, pois não só o era como se deveria esfregar as paredes toscas, os muros rudes e as pedras campestres com a mesma carne para que também eles se nutrissem e alegrassem com tamanha festividade. E mais adiantava que se determinava a ir falar com o Imperador para convencê-lo a mandar que, nesse dia, todos os que possuíssem vacas e burros lhes dessem uma ração dupla em honra e memória daqueles animais que com o seu bafo acalentaram o Menino Deus na manjedoura; e que os camponeses espalhassem pelos caminhos sementes e cereais para que também as aves do céu, em especial as cotovias, participassem da alegria da festividade.

S. Francisco é rotulado por alguns autores cristãos como fazendo parte daqueles que eles consideram os santos loucos. De facto, um homem de Deus que em vez de se rodear de escribas para lhes ditar graves, eruditas e densas sentenças que serão estudadas, memorizadas, debatidas, investigadas, contraditadas, reafirmadas, explicitadas, desenvolvidas, interpretadas, durante séculos, se põe num bosque a pregar aos pássaros não será sinal que tem grande pancada? Seja-o ou não, é uma grande consolação saber que a loucura não é necessariamente inconciliável com a santidade.

Este varão de Deus não foi como tanto se apregoa o inventor do presépio, já existia o costume de edificá-los nos mosteiros. A sua inovação consiste em revivê-lo eucaristicamente, numa gruta com o povo da aldeia de Greccio, um jumento e uma vaca. Depois os franciscanos tornaram-se os seus grandes divulgadores.

2. Todas estas lembranças franciscanas me vieram à memória ao passo que ia escutando aquele jovem que tinha diante de mim.

Dizia-me que sempre passara o Natal em família alargada rodeado de fartura e de carinho. Desde as refeições opíparas às decorações luminosas até aos presentes quantiosos, tudo lhe abundara. Mas esse ano tinha-se recusado a celebrar com a família o jantar e a ceia de Natal. Ficara em casa sozinho enquanto todos os outros tinham ido para os avós. Resolvera-se a passar todo o dia em jejum e oração numa atitude de comunhão com aquela mole imensa de humanidade sofredora que não poderia participar da alegria das celebrações e festejos. Fechou-se numa sala austera, sentou-se a uma mesa e meditou longamente várias passagens dos Evangelhos e das epístolas. No silêncio que o rodeava peregrinou espiritualmente até às mais longínquas paragens ao encontro de todos os desditosos e desgraçados, abraçando-os com as suas preces. Depois, carregando-os em seu coração levou-os à Missa da meia-noite, entregando-os ao Senhor. À Comunhão suplicou ao Deus humanado que recebia no Seu íntimo que visitasse com a Sua graça e o Seu favor todos aqueles que nele trazia. Em seguida vagueou pelas ruas desejando Boas-festas e entregando santinhos aos solitários com que se deparava, fossem mendigos, desabrigados, polícias de serviço. Não contente, apanhou vários autocarros e táxis como pretexto para poder desejar Feliz Natal e levar um pouco de companhia a quem trabalhava. Finda essa ronda pegou no automóvel e percorreu troços de auto-estrada de modo a poder felicitar todos os que trabalhavam nas portagens.

Confessava-me então com júbilo que tinha sido o Natal mais feliz de toda a sua vida. Depois franzindo a testa contou-me que muitos na família o recriminaram, que ele se manteve em silêncio e que só lhe vinha à memória o texto evangélico quem amar o pai e a mãe mais do que a Mim, não é digno de Mim. Se um dia este jovem for canonizado, pensei para comigo, também será incluído no catálogo dos loucos?

3. Quando era jovem, após a minha conversão, recordo-me de nas proximidades do Natal ouvir alguns sacerdotes invectivar do púlpito a árvore de Natal, as iluminações, as prendas e o Pai Natal. Mas uma vez escutei um padre que na homilia surpreendeu toda a gente ao afirmar categoricamente que o Natal era a árvore, as iluminações, os presentes e o Pai Natal. Ouviu-se um suspiro de alívio quando acrescentou o presépio.

A propósito das luzes que alumiam as noites longas deste período dizia-nos que eram sinal da Luz verdadeira que veio ao mundo e que a todo o homem ilumina; Luz que expulsa as trevas do pecado, alegrando os corações e capacitando-nos para ver a Verdade.

Depois refutou com erudição que a árvore de Natal tivesse origens pagãs e citando graves mestres e doutores demonstrou tratar-se da Árvore da Vida reencontrada. Aquela, de que os nossos primeiros pais podiam comer no paraíso, tendo assim acesso à imortalidade, vieram a perdê-la após a expulsão devida ao pecado. Mas na plenitude dos tempos de uma outra árvore, a da Cruz, de que a anterior era prefiguração, pende um Fruto que concede a Vida eterna a quem o comer dignamente. Esse fruto disse de Si mesmo quem comer a Minha carne e beber o Meu sangue terá a vida eterna. Este Fruto desta Cruz dá-se-nos em alimento quando o Comungamos Glorioso e Ressuscitado na Eucaristia. O pinheiro que se mantém verde durante todo o ano simboliza a mesma eternidade. As bolas dependuradas, o sacramento da Eucaristia; os Anjos, a corte celestial; as estrelas, aquela que guiou os magos ao presépio; os Pai Natal, os santos. À raiz da árvore muitas famílias colocam o presépio a indicar que Aquele que agora nasce veio para ser crucificado na árvore da Cruz, isto é, veio para nos salvar. Mas que essa árvore que é Ele mesmo está agora verdejante e iluminada pela Ressurreição. No presépio está presente e anuncia-se a Páscoa.

A origem do Pai Natal, continuava na sua pregação o presbítero, está em S. Nicolau um Bispo representado na iconografia de longas barbas brancas e revestido das cores episcopais que foi muito amigo das crianças tendo salvo várias moças da prostituição e ressuscitando três crianças assassinadas. Como morreu no dia 6 de Dezembro a Igreja celebrava, e celebra, nessa data a sua festa. O seu culto foi-se estendendo passando à Grécia, subindo aos Balcãs, à Alemanha, Dinamarca e Países Escandinavos. Como era muito amigo das crianças era costume, no seu dia, colocar os sapatinhos debaixo da chaminé, pois ele passava deixando os seus presentes. Nalguns sítios reunia-se toda a aldeia colocando as crianças os brinquedos velhos num grande saco. Depois chegava S. Nicolau com o seu. Distribuía os presentes que trazia e pegava nos antigos para os entregar aos meninos mais pobres. Mais tarde esta figura foi associada a uma da mitologia pagã produzindo o santa klaus com o seu trenó e as suas renas. A Coca-Cola viu aí uma oportunidade comercial e transformou-o no Pai Natal que agora por aí vadia com “mães natal” de mini-saia, ou mesmo saia nenhuma, e perna ao léu… Aqui o sacerdote fez-se muito corado e pediu desculpa pelo excesso de linguagem, apesar de, adiantou, ser verdade o que dissera, como estava à vista de todos.

Dado que no 25 de Dezembro se celebra o maior dos dons ou presentes que Deus deu à humanidade ao fazer-Se um de nós faz todo o sentido que se ofereçam prendas que rememorem e sejam um sinal desse único e verdadeiro Presente que é Jesus Cristo. Uma vez que o dia 6 é próximo do dia 25 a oferta dos presentes passou para a noite de Natal. As crianças aprenderam então a pedir ao Menino Jesus, por intercessão de S. Nicolau, o que queriam receber. E o Menino Deus vem com o Seu ajudante, S. Nicolau/Pai Natal, dar aos pais a possibilidade de presentearem seus filhos. Mas os adúlteros, disse o padre engasgando-se, quero dizer os adultos, emendou. Haveis de perdoar, continuou, mas sabereis que quando era menino trocava estas palavras sem saber o seu significado e de tanto o repetir na infância, por vezes tenho este lapso… Mas os adulto… Bem, de facto, talvez não esteja mal dizer os adúlteros já que pelo pecado cometemos adultério contra Deus renegando-O como a verdadeiro Esposo das nossas almas, preferindo o amor das criaturas ao do Criador. Mas, dizia, os adultos também fazem bem em trocar-se presentes. Quando dou um presente estou a dizer, por obra, ao outro que ele é importante para mim. Por isso perdi tempo a pensar no que lhe agradaria e a procurá-lo, e despendi dinheiro. É um modo de dizer: que bom que é que tu existas! Tu és um dom, um presente, de Deus na minha vida e este presente que te ofereço é uma prova de gratidão para contigo e ao mesmo tempo um sinal de que quero estar presente na tua vida, em todas as circunstâncias, também nas difíceis. Eu quero ser para ti um dom de Deus. Ora para afirmar isto não é preciso entrar numa lógica consumista. Pode-se perfeitamente oferecer dádivas carregadas de simbolismo e personalizadas. Algumas famílias que gastavam muito dinheiro em presentes passaram a despender esse valor em contribuições para obras caritativas e sociais, no Natal, e combinaram um montante insignificante, que não poderia ser ultrapassado, para que cada um com essa precisa quantia “inventasse” uma oferta para os familiares. Em muitos lares têm sido impressionantes as revelações de criatividade e os contentamentos assim suscitados.

Será este padre também um dos tais malucos?

4. De há uns anos a esta parte, por invenção do demónio – só pode ser, magotes de jovens, pelo menos em Lisboa e alguns arredores, depois do jantar do dia de Natal abandonam as famílias e vão “para a noite”. Parecem uma espécie de vampiros incapazes de passar sem a escuridade das trevas, onde inebriados de álcool e estupefacientes se entretêm a sugar as almas uns dos outros. Pois, noite por noite, proponho-vos uma outra noite.

Já referimos que o presépio remete para o calvário, o Natal para a Páscoa. A madeira da manjedoura anuncia a da Cruz, o Menino enfaixado em paninhos anuncia o sudário que envolverá Jesus Cristo sepultado. A mirra oferecida pelos magos anuncia a Sua Paixão e morte. A própria liturgia da Igreja nos ensina isto mesmo ao celebrar no dia imediato o martírio de S. Estêvão e três dias depois a matança dos Santos Inocentes.
Quer viver o Natal com uma profundidade que nunca viveu? Quer mesmo estar com Cristo onde Ele menino foi desamparado e crucificado. Quer ter-Lhe aquele amor lacrimoso de S. Francisco que queria percorrer o mundo inteiro chorando a Paixão do meu Senhor porque o Amor que Ele é não é amado?

Queira então mandar-se estar com algum dos muitos grupos de cristãos rezando pela vida diante de hospitais e “clínicas” onde Cristo menino é abortado. À hora do costume nos lugares do costume, a 25 de Dezembro, rezaremos para que haja Natal (= nascimento) para todos os bebés concebidos e ainda não nascidos. Lembre-se que desde o dia 1 de Julho foram impedidos de nascer em Portugal, por uma morte violenta, cinco mil e seiscentas crianças (números redondos). Queira mandar-se persuadir os seus para esta hora de oração na noite do dia de Natal. Vale mesmo a pena amar Aquele que tanto nos amou.

Nuno Serras Pereira
09. 12. 2008