quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

No Seguimento dAquele que nos Une

Aproximamo-nos do Natal. Nesta festa solene celebramos Aquele que despojando-Se da Soberana Majestade de que gozava na excelsa Glória do Céu, Se fez homem, igual a nós em tudo, excepto no pecado. Este, cujo nascimento entre uma vaca e um burro parece não convir à Sua condição nem ao Seu estado, é cantado pelos anjos, e adorado dos misérrimos e analfabetos pastores é ignorado pelos grandes e sábios do Seu povo. O fulgor que vinha incendiar e iluminar o mundo nasceu obscuramente na noite mais escura.

Comunica-nos S. João no seu Evangelho, inspirado do Espírito Santo, um dito sumamente importante de Jesus: “se alguém Me serve, que Me siga, e onde Eu estiver, aí estará também o Meu servo.”

Como Cristo que não veio para ser servido mas para servir e dar vida pela salvação de todos, assim o cristão é chamado a enxertar-se nesse servir de Jesus, incorporando-Se a Ele, para nEle viver para a maior Glória de Deus procurando o maior bem de todos os seres humanos. Àqueles que O servem Cristo liberta-os da escravidão e fá-los Seus amigos , como é dito noutros lugares do mesmo Evangelho. Servir com e como Cristo na terra é viver e reinar com Ele no Céu, no já da antecipação incoada e depois no ainda não da plenitude glorificada.

Seguir Jesus é estar onde Ele esteve. Mas este Seu esteve, em virtude da Sua Divindade, não se desvanece com o tempo, senão que, permanecendo eternamente, é um está que toca, ou melhor, que se torna presente a todos os momentos e circunstâncias da história, e da vida de cada um. Daí que o Seu ter estado é também sempre um estar novamente em toda a novidade do Seu Espírito.

Quem está com Jesus “permanece nEle” , mas só permanece nEle quem “viver como Ele viveu” , deixando-se configurar por Ele. Conformar-se com o Salvador significa, de algum modo, participar, em Cristo Ressuscitado, das etapas e vivências da Sua vida terrena. Como a amizade tende a tornar semelhantes os que se amam e Ele Se fez igual a nós, somos nós chamados a fazermo-nos, suposta a Sua Graça, idênticos a Ele.

Jesus, como sabemos pelos relatos evangélicos, teve momentos de glória, de triunfo, de sucesso, de alegria, de liderança, de grandes amizades, de operar portentos e prodígios, de ser aclamado pelas multidões, etc.: os anjos cantam o Seu nascimento; os Céus abrem-se e o Pai manifesta o Seu amor fazendo com que o Espírito Santo desça sob forma de pomba; acalma tempestades; arrasta multidões; tem um largo grupo de discípulos que O seguem incondicionalmente; estremece de alegria sob o efeito do Espírito Santo; transfigura-Se no alto do monte; expulsa demónios, cura os enfermos, dá vista aos cegos, falar aos mudos, andar aos coxos, ressuscita mortos; participa em festas e banquetes, multiplica pães e peixes; anda sobre as águas; o povo estende-lhe mantos no chão entoando hossanas e celebrando-O com palmas, etc.

Ora, por vezes, nós estamos com Cristo partilhando destas alegrias, destes sucessos, destas amizades, destes triunfos: temos grandes amizades, profundas e verdadeiras, somos compreendidos e muito estimados; arrebatamos assembleias ou encantamos com declarações na comunicação social; pacificamos relações tempestuosas, sossegamos tumultos interiores naqueles que connosco desabafam; somos elogiados, louvados, muito apreciados; temos grandes consolações e iluminações na oração; “ressuscitamos”os desmoralizados; somos uma ou a referência para muitos; multiplicamos as generosidades; convertemos os afastados; enfrentamos os problemas revoltos e agitados da vida como se “surfássemos” ágil e elegantemente sobre eles; festejamos, comemoramos, exultamos.

A vida de Jesus, porém, como saberemos, não se limitou a todas essas coisas belas e fáceis. De facto, Ele que tinha criado o mundo não encontrou lugar para nascer a não ser uma gruta, um estábulo; passa quarentas dias e quarenta noites na secura de um deserto, vindo a ser tentado pelo diabo; passa por pecador ao pedir e receber o baptismo de João; expulsa, num acesso de santa ira, os vendilhões do Templo; é tido por louco, por possesso do demónio e por blasfemo; tentam matá-Lo mais de uma vez; chora a morte de Seu amigo Lázaro e a rejeição de Jerusalém; experimenta uma angústia profundíssima e uma tristeza mortal, sente pavor, cai por terra, sua sangue; é traído, vendido e entregue à prisão com um beijo hipócrita; é caluniado, e negado por Pedro; julgado injustamente é torturado, escarrado na cara, ridicularizado; os que O aclamavam exigem a Sua morte; os amigos desaparecem amedrontados; é condenado à morte mais ignominiosa; acompanhado por dois bandidos, cai por terra ao carregar o tronco pesado e rude; tido por maldito é crucificado e experiencia a maior das solidões, o mistério abissal da ausência do Pai.

Ora a verdade é que também somos chamados a tomar parte neste sofrimento redentor de Cristo: umas vezes somos incompreendidos, outras vezes somos esquecidos, tidos por chalupas ou mesmo por doidos varridos; deixamos de ser uma referência e passamos a ser suspeitos; os magotes que acorriam ávidos da nossa presença ou palavras desinteressam-se, evitam-nos, seguem outros; alguns depois de grandes manifestações de amizade ou de consideração, atraiçoam-nos à meia volta; há mal entendidos e desavenças; aqueles em quem confiávamos intrujam-nos, fantasiam, distorcem e mentem aos outros sobre nós; o apreço dissipa-se e dá lugar à intriga, à murmuração, à desautorização, à injúria, à calúnia; há algazarras, estardalhaços, charivaris e balbúrdias; os convites cessam, as desconsiderações diluviam, os telefonemas escasseiam, o convívio rareia; a solidão sufoca, a angústia dilacera-nos; a vida torna-se árida, gretada; as tentações agigantam-se e repetem-se avassaladoras, sucessivas, insistentes como as ondas do mar; há desfalecimentos graduais e quedas abruptas; noites mais escuras que o breu; há enfermidades imprevistas, incapacitantes; morte de pessoas que nos são queridas, etc.

Creio que é precisamente quando o sofrimento nos acomete que muitos dos cristãos têm maior dificuldade em perceber e viver com sentido essa circunstância. E, no entanto, Cristo nunca iludiu os que O procuravam, avisando-nos com toda a clareza: “quem não tomar a sua cruz para Me seguir, não é digno de Mim” nem “pode ser Meu discípulo.”

Talvez que a dificuldade maior seja a de entender que se trata mesmo da nossa cruz quando só vemos miséria humana. Velozes em descortinar, ou imaginar, as causas humanamente detectáveis carecemos daquele suplemento de Espírito que nos permite descobrir os desígnios misteriosos da Providência Divina que concorre em tudo para o bem daqueles que amam a Deus.

Ou talvez a cruz nos aterrorize e repugne tanto a ponto de esquecermos que somente abraçando-a encontraremos o Ressuscitado, e com Ele a força, a paz, a letícia, o júbilo, da Sua ressurreição. Numa das páginas mais memoráveis da espiritualidade da história do cristianismo, intitulada a Perfeita Alegria, S. Francisco de Assis faz consistir a perfeição da letícia na paciência, entendida esta como a capacidade, de com Cristo e por Cristo permanecer no amor, em meio das maiores provações e injustiças. Não se trata de uma alegria sensível, já que essa está saqueada pelo sofrimento, mas de consolação espiritual ou de uma recta consciência resultante de uma fidelidade perseverante na entrega e na doação.

Ou porventura concluiremos, tão mentalizados que estamos para a acção, que não prestamos para servir, que somos inúteis, incapazes de obrar qualquer coisa por Deus e pelos outros, olvidando-nos que, por vezes, quando o Senhor quer que empreendamos mesmo muito não nos deixa realizar nada. Como diz num dos seus sermões o P. António Vieira: Cristo nunca fez tanto como quando nada fez. Quando estava na cruz de pés e mãos pregados, nada podendo fazer senão padecer, é que operou a salvação do mundo.

É, pois, necessário renovar a consciência de que é o mesmo Espírito que opera tudo em todos. Para nos deixarmos conduzir pelo Espírito no seguimento dAquele que nos une importa recorrermos à estratégia do abandono que a Escritura Sagrada e os santos nos ensinam. Abandonar-se à vontade de Deus.

Santo Inácio de Loyola chama-lhe indiferença, isto é, liberdade interior. Não querer ter mais riqueza que pobreza, honra que desonra, sucesso que revés, mando que obediência, vida longa que vida curta, não querer isto ou aquilo, de modo a estar pronto para acolher o tanto quanto Deus estabelece para nos identificar mais com o Seu Filho Jesus Cristo.

S. Francisco de Sales, por seu lado, recorre a uma comparação apropriada à audiência a que se dirigia no seu tempo. Dizia ele que desejava ser como uma estátua que o Rei, ou seja, Deus, tem no Seu palácio. Esta não tem outro querer senão o do Seu Senhor. Umas vezes apraz ao Rei colocar a escultura no átrio de entrada, outras no cimo das escadarias, na sala dos banquetes, nos salões nobres, outras, porém, numa cave, num sótão, num pátio esquecido e desabrigado, outras ainda nos Seus aposentos, no Seu quarto. A alegria da estátua é estar onde Deus determina. Por isso, S. Francisco de Sales tinha como princípio “nada pedir e nada recusar”.

Santo Inácio, ecoando a Perfeita Alegria das Florinhas de S. Francisco de Assis, vai mais longe escrevendo nos seus Exercícios Espirituais: “ … para imitar e parecer-me mais actualmente com Cristo nosso Senhor, eu quero e escolho antes … desprezos com Cristo cheio deles que honras; e desejo mais ser tido por insensato e louco por Cristo que primeiro foi tido por tal, que por sábio ou prudente neste mundo”, suposta a maior glória de Deus e o maior bem de todos.
Tudo é Graça.

Nuno Serras Pereira
07. 12. 2006