quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

A Calamidade

1. Depois de um período inicial de fascínio infantil pelo Mecanno e pelo Lego foi-lhes tomando fastio e mesmo aversão. Procurou então combater a técnica e a engenharia como imposições forçadas e indevidas à condição humana natural. Começou por isso a despojar-se metodicamente dessas aquisições malignas e nefastas do espírito humano de modo a que não topasse em si com vestígio algum dessa opressão estorvadora e impeditiva de uma simbiose com a natureza primitiva, tal qual se apresenta nos mais recônditos lugares por desbravar, virgens da presença influidora do progresso humano. Entregue a si próprio, sem sombra de tradição e aprendizagem, desobrigado de todos os vínculos, construindo-se a si mesmo, numa espontaneidade radical, sem invencionices nocivas à autenticidade poderia finalmente encontrar a felicidade na liberdade.

Mergulhou pois no cosmos com um fervor de catecúmeno que se submerge nas águas baptismais.

Depois veio o sol tórrido com o seu calor sufocante, a chuva torrencial como um dilúvio, a humidade penetrantemente invasiva, as intermináveis noites gélidas, a perseguição das feras bravias, a persistência dos predadores insaciáveis, o rochedo duro como cama, a gruta infecta como abrigo, o pântano empestado como caminho, os sustos das trevas como companhia, as angústias pelas aflições antecipadas. Veio a fome negra, veio a sede inclemente, vieram as febres desmedidas, vieram os tremores convulsivos, vieram os pesadelos horrendos, veio o pavor da vida, veio o tédio corrosivo, veio a obsessão suicida, veio o medo dela. Instalou-se o desânimo, a desistência, o desespero. Instalou-se a morte lenta, com os seus terrores, senhoreando-se inexorável e implacável daqueles restos de vida. E… quando tudo parecia perdido o destino foi subitamente despedaçado por um estrépito metálico, um estridor de hélices, do qual baixava por uma longa corda umas aparências de humanidade envoltas em artefactos tecnológicos que dele se avizinharam, cuidando-o com solicitude diligente, com competência profissional, com sabedoria médica, com atenção personalizada, com ternura cativante.

2. Após uma longa e exigente recuperação, que exigiu exercícios dolorosos, ginásticas persistentes, horários inflexíveis, escancaramento de intimidades, humilhações constantes, reconhecimento de insuficiências, aprendizagens perseverantes, confissões de ignorâncias, experimentou uma enorme gratidão e uma imensa atracção para com as ciências, as engenharias e as técnicas. Depois de grande reflexão e discernimento decidiu-se a enveredar por essa engenharia que tinha desdenhado. Ciente das suas incapacidades, limitações e vivências passadas teve de ser fortemente motivado, quase que empurrado, por um Professor de engenharia que nele depositava uma confiança singular e de todo inusual que só poderia advir de um mistério insondável.

Depois de muitos trabalhos, superiores ao de Hércules, lá completou as cadeiras curriculares começando de pronto a dedicar-se de alma e coração às engenharias para que se tinha habilitado.

No entanto, porventura por razões temperamentais, ou por insuficiência de uma estrutura pessoal empreendedora, foi paulatinamente inclinando-se para a investigação informal, para o estudo auto-didacta, para a reflexão sobre os fundamentos da engenharia, sua história, sua tradição e inovações prometedoras. À medida que o tempo ia decorrendo, como fosse aprofundando o contacto e o conhecimento do seu ambiente profissional, caiu na conta de graves falhas quer no ensino quer na construção de obras de engenharia. Algumas que à primeira vista podiam parecer ligeiras indiciavam, não obstante, perigos significativos que desembocariam tarde ou cedo em catástrofes.

3. Começou então a chamar a atenção para os acessos à Ponte. Estes apresentavam algumas fissuras que eram tidas por negligenciáveis. O importante, segundo os encarregados era que todos tivessem acercamento à Ponte. Não se podia estar com ninharias e mesquinhices picuinhas. Se acha que está mal que faça melhor! Vir agora com pessimismos derrotistas! Não se pode estar sempre a ver o que está mal. O que é preciso é ser positivo. Estamos nós aqui a construir e edificar e vem este a pôr reparos no que fazemos! Vem agora com exigências esquisitas para com quem quer avizinhar-se da Ponte e com a reivindicação de obras que transformem o que está feito. Temos mais que fazer! Há outros assuntos a tratar! Outras obras a realizar.

Vê-se mesmo que não tem que fazer! Dêem-lhe trabalho e logo verão que lhe passam as manias! Por quem Deus nos manda avisar! É um obcecado! É mesmo tonto! Bem se vê pela vida que levou. Mandem-no às urtigas de onde nunca deveria ter saído!

Como ninguém lhe desse ouvidos começou a correr as ruas gritando e gesticulando os horrores do que estava para vir. Alguns acharam-lhe piada, como a um palhaço que entretém os transeuntes. Os interesses instalados fingiram-se atraídos mostrando-o aos auditórios para logo o ridicularizar e em seguida o ignorar, com um silêncio pactuado. Uma irritação surda percorria os engenheiros chefes cada vez que lhes chegava o eco de um novo dito, de uma proposta diferente, de um arrepiar caminho, de uma outra sugestão diversa das que estavam planificadas pelos especialistas em projectos a que todos têm de se submeter.

À medida que as fissuras se iam alongando e alargando os engenheiros chefes atribuíam-nas aos sinais dos tempos e empenhavam-se na criação de novas estruturas de planeamento, sofisticando-se na propaganda e mercadização. Até que um dia a calamidade aconteceu. Houve uma grande derrocada. Um desabamento que a todos surpreendeu menos ao incapaz que só sabia urrar.

Nuno Serras Pereira
06. 12. 2008